terça-feira, 2 de março de 2010

O tempo de construir a palavra

Jorge Adelar Finatto


Ana Luísa Amaral é uma das vozes mais importantes da moderna poesia portuguesa.

Nascida em Lisboa em 1956, ensina Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorou-se em Literatura Norte-Americana, com uma tese sobre a poeta Emily Dickinson.

É autora de onze livros de poemas, entre os quais Minha Senhora de Quê (1990), Coisas de Partir (1993), Às Vezes o Paraíso (1998), Imagias (2002).

Também publicou obras para a infância, como Gaspar, o Dedo Diferente e Outras Histórias (1999), e A História da Aranha Leopoldina (2000).

Está traduzida para diversas línguas, como castelhano, inglês, francês, alemão, holandês, russo, búlgaro, croata, entre outras. Sairá este ano um livro seu na Suécia e uma antologia de poemas na Itália.

Desde a idade de nove anos vive na cidade de Leça da Palmeira, de frente pro mar, perto da cidade do Porto.

Em 2007 recebeu o Prêmio de Poesia Correntes D’Escritas /Casino da Póvoa, pelo livro A Gênese do Amor (2005), também galardoado na Itália com o Prêmio de Poesia Giuseppe Acerbi.

Em 2008, recebeu o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro Entre dois rios e outras noites (2007).

A entrevistada faz do poema um caminho através do silêncio.

Nele percorre a concretude e a transcendência dos seres e coisas do mundo.

Parece vir de outras esferas essa experiência de existir e de contar que habita os poemas de Ana Luísa.

De Lisboa com o Tejo ao fundo, viagem pelas delícias e asperezas do verbo e do ser, passagem por anjos caídos, andanças até a mais alta estrela, retorno ao chão humilde dos solitários e abandonados, o peso do tempo a suportar, tudo pode ser matéria de poesia aos olhos e ao coração da poeta.

Jorge Adelar Finatto - Ana Luísa, qual a recordação mais remota que tens de escrever e ler poemas? Na tua casa havia livros de poesia?
Ana Luísa Amaral - Como disse já algumas vezes, na minha casa não havia muitos livros de poesia. Havia romances, biografias, mas livros de poesia, não. Mas a minha mãe dizia-me poemas, que eu decorava à primeira vez, e o meu pai tocava piano e compunha também. Não sei se isso terá tido alguma influência. A primeira coisa que fiz rimar (tinha eu uns cinco anos, pedi à minha mãe que a escrevesse, porque eu não sabia escrever), era assim: “Outono. / Chegou o Outono. / As folhas, que outrora / foram verdes belas, / Hoje são amarelas. / Belas, outrora. / Amarelas, agora”. Fiquei muito feliz, lembro-me.

JAF - A partir de quando se firmou em ti a idéia de escrever e mostrar os poemas? Quando publicaste o primeiro livro?
ALA - O meu primeiro livro foi publicado muito tarde, em 1990, tinha eu já trinta e três anos. Mostrei os poemas a muita gente, mas eram o “meu” público. Publicar mesmo, havia um lado meu que não queria, que tinha medo que o que escrevia não fosse bom e também de perder um estado de inocência com a palavra. Como eu digo num poema do primeiro livro, “o poema promete e compromete, / é filho, e como filho obriga a tanto: / ser um filho emprestado a guerra alheia, / outra bomba a estalar revoluções / na perigosa ternura de outro olhar”. Havia, pois, em mim um estado de ambivalência em relação à questão da publicação. Foi Maria Irene Ramalho (finalista do vosso Prémio Jabuti de ensaio, ano passado) que me decidiu a fazê-lo. Mas sempre achei que uma coisa é escrever poemas e outra é fazer livros…

JAF - Quais os poetas que marcaram de forma mais intensa a tua sensibilidade? Que livros foram determinantes na tua formação literária?
ALA - É muito difícil de dizer. Eu adorava tudo o que tinha musicalidade ou que dizia as coisas vulgares de uma maneira diferente. Sempre assim foi. Mas há poetas que me foram fundamentais, mais tarde: Camões, Pessoa, Sá-Carneiro, Ruy Belo, Mário Cesariny, William Blake, William Shakespeare, Emily Dickinson… para falar só de alguns.

JAF - Li em algum lugar que gostavas de ler, na adolescência, Emily Dickinson e Zorro. É mesmo?
ALA - Não é bem assim… Na infância adorava o Zorro. O Zorro era uma revista semanal, com histórias em série, e eu não perdia um número - ainda tenho todos. Emily Dickinson foi uma paixão que me veio já na idade adulta. E que nunca me passou. Continuo apaixonadíssima.

JAF - Como é o teu trabalho de criação? Tens um método, com horário, ambiente determinado, etc? Passas períodos sem escrever?
ALA - Não, não tenho um método. Acho que isso talvez se aplique mais a quem escreve prosa, que exige uma maior “devoção”: afinal, são precisas personagens, vesti-las, dar-lhes corpo, dar-lhes alma, é preciso um tipo qualquer de acção, tempos que se entendam minimamente. Na poesia, não. Eu não escrevo em tempos certos - embora a noite me seja muito querida, sempre. E os cafés (os que restam, sem televisão e sem música, não sou capaz de escrever com música nem com o barulho da televisão). Não consigo passar mais do que, digamos, um mês sem escrever. E um mês sem escrever já é uma eternidade.

JAF - Hoje, que poetas e escritores ocupam a tua estante?
ALA - Mário Cesariny, Herberto Hélder, Nuno Júdice, os meus favoritos (Shakespeare, Blake, Dickinson, Camões, Sá-Carneiro, sempre), Sophia, Clarisse Lispector, Maria Velho da Costa, Mário de Carvalho… muitos, muitos.

JAF - Se fosse possível encontrar com algum poeta do passado e conversar durante um dia, quem seria o escolhido e por quê?
ALA - Ah, seria com certeza Emily Dickinson! Nem tenho dúvidas! Queria perguntar-lhe por que razão não publicou, queria perguntar-lhe como se consegue escrever um poema com versos como “Parting is all we know of Heaven / And all we need of Hell”, queria pedir-lhe que conversasse comigo. E depois ficava só ali, a ouvi-la falar o resto do dia…

JAF - Que poetas e escritores portugueses da atualidade recomendarias aos leitores brasileiros?
ALA - Mário Cesariny, Sophia de Mello Breyner, Luiza Neto Jorge, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, Ruy Belo. Todos estes morreram já. Dos vivos, Luís Quintais, Maria do Rosário Pedreira, Maria Teresa Horta, Manuel Gusmão, Ana Paula Tavares, Nuno Júdice, Pedro Tamen, António Osório, Armando Silva Carvalho, Ana Marques Gastão, só para falar de alguns. Uma vez mais, tantos…

JAF - Existe em Portugal um bom público leitor de poesia? Os meios de comunicação abrem espaços para livros e escritores de forma democrática?
ALA - Os meios de comunicação cada vez estão mais virados para o lucro e para a ideia de rentabilização - as colunas literárias estão a desaparecer dos jornais diários mais importantes (e alguns destes fecharam). Apesar de tudo, acho que sim, que há um bom público leitor de poesia, atendendo ao tamanho do país e à população.

JAF - Acreditas que está havendo uma maior aproximação entre as literaturas que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa?
ALA - Sem dúvida. Basta pensar em Mia Couto ou em José Eduardo Agualusa, ou em Luandino Vieira. E devagar, mas de forma persistente, vão-se começando a publicar livros de autores brasileiros. Eu própria tenho um livro editado no Brasil, A génese do amor, e devo ter uma antologia também aí publicada neste ano. Mas ainda é pouco este esforço, devia, no caso de Portugal e do Brasil, haver mais investimento por parte dos editores brasileiros e dos editores portugueses.

JAF - O que pensas da recente reforma ortográfica?
ALA - Acho um verdadeiro disparate. Porque, por exemplo, a vossa “camisola” é a nossa “camisa de noite”, a nossa “camisola” é o vosso “suéter”. E está bem assim. A “reforma ortográfica” não vai resolver isto - que, na realidade, não é problema nenhum… Não é por cortarmos consoantes que nos vamos passar a perceber melhor - a geração da minha mãe lia imenso Jorge Amado e lia-o em português do Brasil; e percebia tudo! Eu agora estou a escrever em português de Portugal e tu percebes-me perfeitamente…! No nosso caso, não há um português melhor e um português pior, não há um português-padrão e uma variante: há o português do Brasil e o português de Portugal. E as diferenças são maravilhosas.

JAF - É possível conciliar bem a atividade de professora com a de escritora?
ALA - No início, foi. Enquanto não tinha tantas solicitações como escritora. Neste momento, é difícil: como professora, no meu Departamento, que é o Departamento de Estudos Anglo-Americanos, ensino vários cursos, oriento imensas teses (mestrado e doutoramento); depois, sou da direcção do Instituto de Literatura Comparada; e coordeno projectos de investigação; e tenho todas as burocracias inerentes à profissão. Como escritora, cada vez recebo mais convites e há todos os outros aspectos (traduções dos poemas, pedidos de poemas, entrevistas…). Preciso de tempo para escrever.

JAF - Diante de um mundo tão difícil, com sérios problemas em escala global, ainda há espaço para a poesia?
ALA - Eu acho que sim. Acredito que sim. Que a poesia, a servir para alguma coisa, será como um reduto de justeza para a memória. Adorno disse que depois de Auschwitz, do puro horror que foi Auschwitz, a poesia deixara de ser possível. Mas não só o que ele dizia tem que ser entendido também metaforicamente, mas ainda a prova de que ela é possível está aqui, entre nós. O gesto estético de desejar a perfeição habita o ser humano - e para nada serve, a não ser para nos tornar mais humanos.

JAF - É possível sobreviver como escritor em Portugal?
ALA - Não, a não ser que se seja um José Saramago. Não, definitivamente.

JAF - Existe um modo feminino e outro masculino de escrever?
ALA - Ai, que pergunta difícil! Eu dou um curso sobre isso… para chegar à brilhante conclusão de que não sei! E não sei mesmo. A poesia, pensada como pura possibilidade, não tem sexo. Mas a cultura é sexuada… Que influência tem a cultura na escrita? Não terá?! Por outro lado, a poesia passa pelo fingimento e sempre foi possível aos homens travestirem-se poeticamente de mulheres e escreverem “como uma mulher” - mas não será que este “como uma mulher” é uma construção, e passa, portanto, pelo estereótipo? Ah, essa tua pergunta dava uma tese. E já deu várias!!

JAF - A tua poesia já está sendo publicada no Brasil, felizmente.
ALA - Sim, saiu A Génese do Amor, pela editora Gryphus. E deverá sair Entre Dois Rios e Outras Noites. E também uma antologia no final do ano.

JAF - O que dirias a um jovem poeta, que enfrenta dificuldades comuns a quem se dedica à literatura?
ALA - Dir-lhe-ia que escrevesse e não se preocupasse com mais nada: nem com marketing, nem com editoras, nem com nada dessas coisas. O essencial é escrever. Da melhor forma que formos capazes, com paixão.

JAF - Como é a vida em Leça da Palmeira?
ALA - Muito calma. Eu vivo num apartamento (o 3º Esq., recuado, com uma grande varanda), a 7 minutos de distância do mar. Moro em frente a um jardim grande, onde a minha cadela, a Lili Marlene, adora ir. Moro perto dos correios e de talhos (olha um exemplo das diferenças, vocês dizem “açougue”), e de farmácias, de pequenos mercados e cafés. E das traseiras da minha casa vejo árvores grandes e uma capelinha. Leça da Palmeira é uma localidade pequena a cerca de 10 km do Porto, eu demoro 10-12 minutos de carro até à universidade, e depois volto aqui e é tudo muito calmo. As pessoas conhecem-me, eu vivo aqui desde os nove anos de idade, é muito bom. Tenho um cafezinho perto da minha casa, a uns vinte passos, onde todas as manhãs tomo um café e compro cigarros. Agora, por exemplo, são quase duas da madrugada e está tudo em silêncio lá fora, e eu vejo as árvores, agora escuras, e o branco da cal das paredes da capela. E terminei esta entrevista. E vou mandar-ta. Obrigada.
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Três poemas de Ana Luísa Amaral

LUGARES COMUNS

Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)

Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora…

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são


ANIVERSÁRIO

Sentei-me com um copo em restos de
champanhe a olhar o nada.
Entre crianças e adultos sérios
Tive trinta em casa.

Será comovedor os quatro anos
e a festa colorida
as velas mal sopradas entre um rissol
no chão e os parabéns:
quatro anos de vida.

Serão comovedores os sumos de
laranja concentrados (proporções
por defeito) e os gostos tão
diversos, o bolo de ananás,
os pés inchados.

Será soberbamente comovente
toda a gente cantando,
o mau comportamento dos adultos
conversas-gelatinas e os anos
só pretexto.

Mas eu gostei. E contra mim gostei
mesmo no resto:
este prazer pequeno do silêncio
um sapato apertando descalçado
guardanapo e rissol por arrumar
no chão e um copo

olhando o nada
em restos de champanhe


VISITAÇÕES, OU POEMA QUE SE DIZ MANSO

De mansinho ela entrou, a minha filha.
A madrugada entrava como ela, mas não
tão de mansinho. Os pés descalços,
de ruído menor que o do meu lápis
e um riso bem maior que o dos meus versos.
Sentou-se no meu colo, de mansinho.
O poema invadia como ela, mas não
tão mansamente, não com esta exigência
tão mansinha. Como um ladrão furtivo,
a minha filha roubou-me a inspiração,
versos quase chegados, quase meus.
E mansamente aqui adormeceu,
feliz pelo seu crime.


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Foto: Ana Luísa Amaral

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4 comentários:

  1. Excelentes a entrevista e a lucidez da poeta. Ao falar do disparate que significa a reforma ortográfica realizada (tanto mais quando há tanta coisa a reformar antes em um País como o nosso), fazemos nossas as suas palavras. O blog já é leitura "obrigatória" dos amantes da boa literatura! Abs, Lorenzo

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  2. Adelar:

    Da poesia portuguesa contemporânea, pouco se conhece por aqui, mesmo entre os cultores da Literatura...
    Como escrevi, tempos atrás, uma coluna num site luso-brasileiro, pesquisei bastante e encontrei nomes como Helberto Helder e Sophia de Mello Andresen.
    Eles tem um gosto pela poesia existencial, pela profundidade dos temas, bastante diferente de nossos poetas, em geral, que preferem o minimalismo, o pós-concretismo e outros caminhos...
    Bom ter trazido este nome, o qual, sinceramente, desconhecia.

    Abraço.

    Ricardo Mainieri

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