sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Púbi Mann contra o Terceiro Reich

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Lago da Ausência


O fato por todos conhecido em Passo dos Ausentes  é que Púbi Mann retornou à cidade depois de 14 anos, sem memória e envolto numa espessa névoa de silêncio, numa remota e fria tarde de junho de 1952. Não tinha uma história pra contar, não reconhecia mais o lugar, as pessoas nem a si próprio.

Eram quatro horas quando o Jeep verde do Exército rompeu a neblina na entrada da cidade. Parou na Praça da Ausência. Trazia quatro militares e aquele homem com barba ruiva, vestindo um grosso capote azul-marinho e botas de cano longo. No lado direito da cabeça, tinha uma profunda cicatriz onde o cabelo não crescia.

Púbi não olhava nos olhos das pessoas. Esboçava um vago e incompreensível sorriso. O olhar passeava curioso pelos telhados ao redor da praça.  Dois oficiais levaram-no até o Teatro da Vida Breve, que também é biblioteca, pinacoteca, cinemateca, café e local de encontros.

Mocita de la Vega, administradora do teatro, explicou aos soldados que tentaria localizar o filósofo Don Sigofredo de Alcantis, a quem caberia atender a missão, na condição de presidente da Sociedade Histórica, Geográfica, Geológica, Astronômica, Filosófica, Literária, Antropofágica e Artística de Passo dos Ausentes.  

Mas Don Sigofredo não se encontrava na cidade, estava longe, no Contraforte dos Capuchinhos, visitando Claudionor, o Anacoreta. Mocita, então, buscou Juan Niebla, o músico cego, na estação de trem abandonada. E foi Niebla, na condição de vice-presidente da SHGAFLA, quem recebeu os militares no gabinete.

- Conforme mostram os documentos que ora entregamos - disse um dos oficiais, que, depois de olhar para Niebla, interrompeu a fala e virou-se para seu colega. Este, com um gesto impaciente, mandou que continuasse. - Como eu dizia, o senhor Púbi Mann, que agora apresentamos, foi mandado de volta ao Brasil pelo governo da Alemanha.

- De acordo com o Informe 79/EB/52, ele foi incorporado como soldado cozinheiro na marinha daquele país em 1939, um ano depois de chegar na Alemanha, vindo do Brasil.  Foi um lamentável equívoco, dizem as autoridades alemãs, já que o senhor Púbi estava de passagem, procurando parentes distantes na cidade de Lübeck.

- Ocorre que os Mann tinham fugido da Alemanha com a ascensão do nazismo. Púbi ficou sem ter para onde ir. Foi expulso da pensão quando o dinheiro acabou e passou a vagar pelas ruas e praças de Lübeck. Não conseguia se comunicar direito, pois falava num dialeto alemão de emigrantes do século XIX. Dormia na rua. Os dias eram difíceis. As autoridades locais resolveram recolhê-lo a um abrigo. Fizeram-lhe novos documentos, só que como cidadão alemão, e o entregaram ao exército. Poucos dias depois, foi encaminhado à marinha de guerra, sendo incorporado como soldado cozinheiro.

Juan Niebla interrompeu e disse:

- Pobre Púbi. Sinto pelo seu silêncio que está ausente deste mundo. Éramos amigos de infância. Com a morte dos pais, ele resolveu viajar em busca de possíveis familiares na Alemanha. De nada adiantaram nossos avisos sobre o perigo da guerra. Foi em busca de uma obscura ancestralidade. Está mais oco do que quando partiu.

- Só que Púbi se negou a servir na armada de Hitler -, retomou o oficial. No quartel, as coisas ficaram ruins pra ele. Mesmo assim, foi embarcado. Remisso, negava-se a fazer qualquer coisa, quis organizar um motim e foi preso no porão do navio. Durante um bombardeio, um pedaço de aço atingiu-lhe a cabeça, ferindo-o gravemente. Ele perdeu a memória.  De volta, foi encaminhado a um campo de concentração na Alemanha.

- Depois da guerra, foi para um hospital psiquiátrico, de onde teve alta recentemente para ser devolvido ao Brasil. O informe diz ainda que ele recebe uma pensão mensal e vitalícia do governo daquele país por serviços prestados contra o nazismo, com sacrifício da própria saúde. Não há outros detalhes.

Os soldados partiram, afundando-se com o Jeep verde na neblina. Coube a Juan Niebla, com o auxílio do braço de Mocita, levar o desmemoriado pela mão até a casa da irmã Celina Mann, única parente viva.

Foi deste modo que Púbi Mann regressou a Passo dos Ausentes. Alto, magro, curvado e esquecido de tudo. Passava os dias sentado em silêncio na cadeira de balanço do avarandado do sobrado familiar. Celina, todos os dias, pelas cinco da tarde, lia para ele trechos da Bíblia.

Isto foi assim até o dia em que, do nada, durante uma caminhada com a irmã ao redor do Lago da Ausência, aconteceu o milagre que ninguém mais esperava. Púbi emergiu das trevas e contou a verdadeira e incrível história daquela cicatriz e de sua rebelião contra o Terceiro Reich. Mas isto já é outra história e caberá ao próprio Púbi contá-la, quando assim resolver.

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Texto revisto, publicado em 11 de junho, 2012.